No coração da Zona Sul do Rio de Janeiro, entre as curvas sinuosas da Rocinha e a paisagem estonteante do Leblon, esconde-se uma história que poucos conhecem. Hoje, a comunidade abriga uma população vibrante e movimenta um comércio pulsante. Mas décadas atrás, suas ruas eram palco de uma batalha entre homens e máquinas, onde a velocidade reinava e o perigo espreitava a cada curva. Entre 1933 e 1954, o lendário Circuito da Gávea, conhecido como “Trampolim do Diabo”, foi um dos mais desafiadores circuitos de rua do automobilismo mundial.
Marcado por um traçado espetacular que combinava morros, praias e florestas, o circuito se tornou palco de momentos inesquecíveis e também de tragédias. Não era um trajeto para os fracos de espírito: curvas traiçoeiras, desníveis abruptos e a total ausência de segurança faziam dele um verdadeiro campo de batalha para os pilotos.
Uma jornada pelo perigo
A corrida começava na Gávea e seguia rumo ao Leblon, serpenteando pela icônica Avenida Niemeyer, um mirante natural de tirar o fôlego. Por ali, os pilotos enfrentavam o vento salgado e a vista imponente do oceano antes de alcançar São Conrado. A partir desse ponto, a prova tomava um rumo ainda mais desafiador: as curvas estreitas da Rocinha.
Na época, a comunidade ainda não era densamente povoada, e as subidas em “Z” representavam um dos trechos mais traiçoeiros da prova. Esses trechos, combinados com a alta velocidade e os frequentes acidentes, renderam ao circuito seu temido apelido. A rota continuava até o atual Parque da Cidade, para então mergulhar novamente em direção ao Leblon e fechar a volta.
Foram 21 anos de disputas intensas e momentos históricos, em um percurso onde nada era previsível. Se hoje as corridas são protegidas por barreiras e medidas de segurança rigorosas, naquela época os torcedores se amontoavam ao longo das ruas sem qualquer proteção, muitas vezes invadindo o trajeto no calor da competição.
Os primeiros campeões e a ascensão de Chico Landi
O circuito nasceu do entusiasmo de dois visionários do automobilismo brasileiro: Manuel de Teffé e Irineu Corrêa. Eles foram os pioneiros ao trazer a emoção das corridas para as ruas cariocas, após terem competido em desafios internacionais na década de 1920. Teffé foi o primeiro vencedor da prova em 1933, dando início a uma era de disputas memoráveis.
Irineu Corrêa, conhecido como o “Leão de Petrópolis”, protagonizou uma das histórias mais marcantes do circuito. Em 1934, largando na última posição, fez uma corrida impressionante e chegou à liderança após o abandono do jovem Chico Landi, que estreava na competição. No ano seguinte, porém, o destino reservou um desfecho trágico para Irineu: durante a prova, seu Ford V8 perdeu o controle e se chocou contra árvores na Avenida Visconde de Albuquerque, arremessando o carro para dentro de um canal. O piloto não resistiu, e sua morte marcou o primeiro grande luto da história do circuito.
Os anos seguintes viram o domínio dos pilotos estrangeiros. Ricardo Carú e Vittorio Coppoli, da Argentina, venceram em 1935 e 1936. Nos anos seguintes, foi a vez do italiano Carlo Pintacuda, que além de se tornar um nome conhecido no Rio, acabou imortalizado até mesmo em marchinhas de Carnaval. Outro nome que deixou sua marca foi o da francesa Hellé Nice, uma mulher à frente de seu tempo, que desafiava padrões não apenas nas pistas, mas também na sociedade. Dona de uma personalidade vibrante, chegou a posar de biquíni em uma época em que isso era um escândalo, mas sua passagem pelo circuito ficou marcada por um grave acidente que resultou na morte de seis espectadores.
Mas o Brasil encontraria em Chico Landi o seu grande herói da Gávea. Após sucessivas quebras mecânicas o impedirem de vencer entre 1934 e 1937, ele finalmente conquistou a vitória em 1941. O feito foi celebrado com uma dobradinha no pódio ao lado de seu irmão, Quirino Landi. Após a interrupção das corridas entre 1942 e 1946 devido à Segunda Guerra Mundial, Landi voltou a dominar, vencendo mais três vezes e se tornando o último brasileiro a triunfar no circuito, em 1948.
Os últimos rugidos dos motores
Nos últimos anos do circuito, os estrangeiros voltaram a brilhar. Luigi Villoresi levou o troféu em 1949, seguido pelo argentino José Froilán González em 1952 e pelo suíço Emmanuel de Graffenried em 1954. Mas foi nesse último ano que Chico Landi escreveu seu nome de vez na história da Gávea, registrando a melhor volta da história do circuito: 7 minutos e 3 segundos para completar os 11 quilômetros.
A cidade do Rio de Janeiro, no entanto, seguia em constante transformação. A urbanização avançava, os bairros cresciam e a falta de segurança tornava cada vez mais difícil a realização das provas. Assim, em 1954, o rugido dos motores ecoou pela última vez na Gávea, encerrando um capítulo lendário do automobilismo.
Hoje, o circuito não existe mais. As ruas foram ocupadas por novas construções, o tráfego mudou, e as corridas de rua deram lugar ao ritmo cotidiano da metrópole. Mas para aqueles que conhecem a história, cada curva ainda guarda os ecos da velocidade que um dia fez do Trampolim do Diabo um dos circuitos mais desafiadores do mundo.